Depois de morar na rua e criar técnica de aplique com restos de cabelo, empreendedora fatura R$ 3,5 milhões

Por Shagaly Ferreira (Globo.com)

Tempo livre é algo raro na rotina da cabeleireira Anna Telles, 33 anos, que concilia a gestão de um salão de beleza em Salvador (BA) com as consultorias ministradas para centenas de trancistas e a organização das vendas de cosméticos de fabricação própria em uma loja online. A baiana, que faturou R$ 3,5 milhões em 2022 como empreendedora capilar, estruturou toda a vida profissional em dedicação à estética de mulheres negras, em um movimento de superação à discriminação que sofreu na infância e na adolescência.

Quando criança, Telles teve os cabelos crespos alisados pela mãe que criticava a textura dos fios. Por causa das madeixas, a empreendedora conta que ouvia insultos preconceituosos de outros membros da família e dos colegas de colégio. “Eu lembro que me sentia muito triste. Caía muito cabelo por causa do produto químico e eu era muito jovem. As pessoas me humilhavam, e as críticas que eu recebia em casa continuavam na escola”, lembra.

Já na adolescência, a empreendedora começou a ter contato com as tranças sintéticas, que funcionavam como uma alternativa para alongamento dos cabelos e para o uso de outras texturas. Por mais de um ano, ela acompanhou o trabalho de uma vizinha trancista em uma região periférica da capital baiana. Por não ter dinheiro para arcar com os custos do procedimento, ia recolhendo os fios que sobravam nas sessões para poder utilizá-los na própria cabeça.

Foi com esse “aplique de sobras” que Telles fez em si mesma suas primeiras tranças e começou a praticar as técnicas que moldaram sua profissão. Além de influenciar positivamente em sua autoestima, o aprendizado também foi crucial para a sobrevivência da empreendedora em um dos momentos mais difíceis de sua vida, quando sofreu violência doméstica e precisou morar na rua aos 15 anos.

Enquanto vivia nas vielas do Pelourinho, no centro histórico de Salvador, ela trocava os serviços de cabeleireira por roupas, sapatos e produtos de higiene. Para comer, buscava atender as clientes nos domicílios e marcar os procedimentos próximo ao horário do almoço, para que alguém também pudesse lhe oferecer comida.

Ela tentava disfarçar a situação de vulnerabilidade na qual vivia. “Eu aprendi a me comunicar muito bem. Sabia disfarçar. Andava com uma bolsa, um sabonete, uma escova de dentes e uma ou duas peças de roupa”, explica Telles.

Nessa época, a baiana conheceu o marido, Fernando Bispo, que a orientou sobre precificação dos serviços e ajudou a abrir o primeiro salão, ainda com poucos recursos, em um dos cômodos da casa onde moravam. Ali, ela conquistou as primeiras clientes fixas e aperfeiçoou a técnica que desenvolveu e que nomeou como “Enrolado 3D”, um método de aplique que tenta aproximar ao máximo o aspecto dos fios aos cachos naturais.

Trancista profissional

Cabeleireira baiana criou marca de cosméticos e distribui os produtos no Brasil e no exterior — Foto: Divulgação
Cabeleireira baiana criou marca de cosméticos e distribui os produtos no Brasil e no exterior — Foto: Divulgação

Do salão simples, o trabalho de Telles se expandiu. Hoje, ela mantém 22 profissionais em um espaço de beleza localizado em um bairro nobre da capital baiana, onde oferece procedimentos que custam entre R$ 100 e R$ 500. No empreendimento, ela dá preferência à contratação de mulheres negras.

O faturamento mais robusto, no entanto, vem das vendas online e físicas — em distribuidoras — da marca de cosméticos capilares que leva seu nome e existe há cinco anos. Os primeiros produtos foram desenvolvidos com o auxílio de uma profissional do ramo de química, que buscou formular os cremes conforme o resultado que Telles gostaria de oferecer aos cabelos crespos das clientes.

Hoje, a marca produz 15 mil toneladas de produtos por mês divididas em 15 linhas de cosméticos, com destaque para o creme finalizador de penteado Mel Cola, vendido a partir de R$ 30. O portfólio ainda inclui acessórios para cabelos, apliques e uma linha de perfumaria premium, lançada há quatro meses, com produtos que custam R$ 100. As vendas incluem o mercado nacional e internacional. “A gente está vendendo hoje para seis países e entrando com o segundo revendedor nos Estados Unidos”, conta a cabeleireira.

Nos últimos anos, a trancista baiana tem se dedicado à produção de conteúdo digital e de consultorias presenciais. Em seu canal no YouTube, ela mantém uma produção frequente de vídeos para mais de 170 mil inscritos com dicas para manutenção de cabelos crespos e cacheados. Já nos eventos, ela reúne centenas de profissionais para lições sobre marketing digital e gestão de negócios. As mentorias custam por volta de R$ 10 mil.

Conhecimento compartilhado

Telles também tem ido às comunidades em regiões periféricas de Salvador para compartilhar gratuitamente os conhecimentos que aprendeu ao longo da vida. “As meninas começam a trançar por sobrevivência, e a gente vem trazendo essa consciência de que trancista é uma profissão, para que elas não desistam de trançar e entendam que isso também pode ter um negócio.”

Com seu trabalho e sua trajetória, a cabeleireira baiana deseja ser para essas mulheres uma referência. “Quando me veem, elas se reconhecem. Então, eu percebo que, além de inspirar, eu consigo trazer para essas mulheres a vontade de vencer e a visão de que o ambiente em que elas estão não determina quem elas são”, diz Telles. “Isso fez diferença para mim na época, mesmo tendo tão pouco de representatividade. Eu estando onde estou, elas entendem que também podem seguir essa jornada.”

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